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Manuel Lemos. “O Estado tem de olhar para o envelhecimento como um problema sério da sociedade portuguesa”
O presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) reconhece que os lares estão ‘cheiíssimos’ e que é preciso ‘um milagre’ para ter uma vaga. Os privados dão alguma resposta, mas inacessível para muitos portugueses. E Manuel Lemos lembra: ‘Somos um país envelhecido e um país pobre’.
Temos uma população cada vez mais envelhecida, o que exige uma maior resposta do lado do apoio. Está a ser suficiente? O que tem falhado?
Somos um país envelhecido e um país pobre. Podíamos ter uma população envelhecida e sermos um país rico. Somos dos países mais envelhecidos da União Europeia, a nossa população envelhece mais depressa, tem problemas de saúde mais cedo e à questão do envelhecimento junta-se a falta de recursos financeiros. Às vezes vejo propostas muito interessantes e que até já vi a serem aplicadas em outros países com outras culturas.
Sente que há cada vez mais idosos abandonados?
Primeiro temos um problema cultural, depois temos um problema de responsabilidade e um problema de recursos. Julgo que deve ser um drama total para a pessoa que abandona outra no hospital, mas depois apresentam argumentos, como ‘não tenho como cuidar dele’, ‘o Estado é muito burocrático” e depois as instituições não funcionam. Portugal é um país fantástico a fazer legislações, mas muito menos fantástico a tomar decisões no terreno. São muito decisões de gabinete, muito cópias de realidades diferentes das nossas que lá funcionam porque ouviram as pessoas e aqui não funcionam. Portanto, a situação não é nada cómoda e a gente fala do abandono e dessas coisas com grande facilidade mas são de facto situações muito complexas e não acredito mesmo – a não ser que as próprias pessoas tenham algum problema – que queiram abandonar os seus idosos de forma tranquila.
Mas como vê notícias de idosos que são mal tratados, com falta de higiene, entre muitos outros problemas…
Vou-lhe dar um exemplo. Há uma misericórdia que não vou dizer o nome, mas que recebeu um idoso ao abrigo do acordo das áreas hospitalares. Não era dali, mas foi contando as suas origens, que eram a uns 50 quilómetros e um dia desapareceu. Ele dava umas voltas pela terra, mas aparecia sempre à hora das refeições. No entanto, houve um dia em não apareceu e andou tudo à procura dele, a GNR foi chamada, até que um taxista disse que um colega o tinha ido levar a casa. No dia seguinte apareceu lá outro carro de praça com o senhor e com uma senhora que se apresentou como sendo a sua mulher. Primeiro, o hospital a que tinha dito que não tinha retaguarda familiar não fez o trabalho bem feito, porque afinal tinha a mulher. Segundo, a mulher chegou lá e disse: ‘Venho cá devolvê-lo porque não quero nada dele a não ser a reforma’. Mas temos N casos destes.
E isso também acontece com filhos que nem sempre querem cuidar dos seus pais…
Temos de tudo.
E esta altura é mais complicada por os filhos quererem ir de férias?
Estas situações são sempre muito escondidas porque os filhos não dizem o que fazem, naturalmente, e os pais também não o dizem porque têm vergonha. Mas o próximo inverno vai ser dramático.
Porquê?
Há gripes, há febres e os idosos vão para os hospitais e as pessoas acham que os hospitais têm obrigação de ficar com eles e acabam por abandoná-los.
Não deveria haver uma maior fiscalização do Estado?
Vi uns números de um estudo dos administradores hospitalares [em março estavam internados nos hospitais mais de dois mil utentes que já tinham alta clínica], mas também é preciso que os hospitais façam um trabalho bem feito para não acontecerem casos como estes, em que o senhor afinal tinha retaguarda familiar. Posso dar 10, 20, 30 casos de pessoas que foram parar aos nossos lares com o argumento de que não tinham e afinal tinham essa tal retaguarda familiar. É preciso fazer um trabalho bem feito e o método mais cómodo é pôr o idoso no hospital e dizer que não tem retaguarda familiar. E depois tem que haver respostas do lado do Estado, o Estado tem de olhar para o problema do envelhecimento como um problema sério da sociedade portuguesa.
O Estado olha mais para o problema do envelhecimento em termos de pagamento de pensões?
O pagamento de pensões faz parte da solução, mas sabe muito bem que uma das coisas que as pessoas querem saber é do valor da pensão – é o que acontece com esta tal senhora. Quando mandaram o senhor para a Misericórdia deviam também ter enviado a pensão, pois se assim fosse ela teria aparecido logo para ir buscar, agora se continuar em casa a receber o valor não o vai buscar. Temos de ser muito mais ágeis.
Chegou a dizer que o Governo tem de ‘olhar para o envelhecimento como um todo e pedir a cooperação ativa do setor social’…
Os lares estão cheiíssimos. Na altura da covid morreu muita gente e pensei que ia haver mais vagas, mas passado quatro meses já estavam novamente a rebentar pelas costuras. Há muita gente a precisar e fala-se que os lares ‘não podem ser assim, têm de ser assado’. Em teoria concordo com isso tudo, mas depois têm dinheiro para pagarem isso? Repare, o Estado está a pagar 34% do custo de um idoso em lar quando devia pagar 50% e depois quem paga o resto é a reforma do individuo, é a família quando está presente e muitas vezes é a pobre da Misericórdia.
Na última entrevista que nos deu disse que ia pedir ao Governo para rever os valores…
Pedi, mas isto é um puzzle. O Governo subiu os valores mas também subiu e bem o salário mínimo e o impacto do aumento do salário mínimo levou isso tudo e ficámos na mesma.
Também admitiu que ‘era um milagre encontrar uma vaga num lar’…
E continua a ser preciso um milagre.
E os lares privados não deveriam representar uma alternativa?
Os valores são muito altos. Mas estou a falar dos privados bons, não estou a falar dos lares ilegais. Esses são uma vergonha.